21 maio 2009



Aos poucos nasço no espelho embaciado. Tenho dificuldade em reconhecer-me. E tudo porque falhei. Não encontro resposta para o fracasso. Face à minha face, desisto e fecho os olhos.
Encontro-me de novo na rua enlameada. Não a vejo. Terá sido um sonho? Talvez não. Alguém me acena ao longe e, lentamente, vou ao seu encontro.
Não a conheço.
Dá-me dois beijos na cara. Do outro lado do espelho os olhos abrem-se.
Senta-te. Quero que percebas porque acabou.
Isto tem de ter mão do autor. Procuro uma luz no canto mas o sol brilha em todo o seu esplendor.
Não desvies o olhar. Ninguém é melhor do que tu. Não amo ninguém como te amo. Mas, sabes, às vezes não bastam duas pessoas impecáveis para ter um casamento feliz.
Enterro-me no banco do jardim onde me encontro. E, sem aviso, começo a sentir um aperto no peito. Como pode ser se não a conheço nem sei… .
Do outro lado do espelho um murro apaga o reflexo.
Sim. Por artes mágicas começo a viver uma vida que não é a minha, eu, que não tenho vida. E esta jovem aqui sentada deve ser a mulher do autor.
Aos poucos fui-me afastando de ti, comecei a não me importar que não me abraçasses e pensei que ainda sou uma pessoa e não só mãe e mulher. E como pessoa mereço ser feliz.
Já não sou. Vivo no outro lado. Tenho uma missão: conquistar esta mulher pela primeira vez salvando o autor.
Que posso fazer? Pedir-te perdão?
Ela levanta-se e atirando o longo cabelo para as costas abana repetidamente a cabeça.
Nunca irás perceber.
Gosto de casos aparentemente perdidos. Aceito. Agarro-lhe nas mãos.
Vou provar-te que só eu te posso fazer feliz.
O sol esconde-se atrás das árvores. A noite começa a invadir-me.

23 outubro 2006

Viagem-III


Entro confiante na repartição projectando o fim da minha viagem.
Um balcão com divisórias de vidro, iluminadas por um foco colocado no tecto, acolhe funcionários com apêndices auriculares.
Coloco-me numa das filas que indica Renovação de Documentação. Apenas uma pessoa me antecede. Rapidamente a encaminham para outro departamento.
Boa tarde. Recebi a vossa carta para renovar os papéis.
Com certeza, senhor. Um momento.
A funcionária tecla num computador e fixa o olhar ao meu lado. Está a ouvir instruções no auricular. Abana levemente a cabeça.
Por favor, siga-me.
Conduz-me por um corredor claro e estreito até uma porta.
Entre. Se quiser sente-se nessa cadeira.
Aceito a sugestão.
Escuro. Tenho dificuldade em adaptar-me à ausência de luz sentindo-me praticamente cego. Quando começo a pressentir a presença de um vulto numa esquina da sala, acende-se uma luz. Pequena mas forte que me obriga a fechar os olhos. Com a mão à frente da cara procuro descobrir quem está na sala. Avança na minha direcção. Pára e estende-me a mão.
Viva. Espero que te sintas confortável.
Cumprimento-o e, apesar da imediata familiaridade, pergunto.
Quem és?
Puxa de uma cadeira e senta-se ao meu lado.
Tu. Pelo menos em parte.
Olha, está bem, isto é muito bonito mas encontrei crianças que esperavam mas não estavam à espera, comboios que surgem de nevoeiros misteriosos, a mulher que amei e já não existe e agora, por causa de uns simples papéis, dou de caras com um tipo que diz que sou eu, francamente, vou-me embora para a minha tenda e de lá não volto a sair.
O suposto outro eu sorri.
Tens toda a razão, moicano. Eu explico. Sou o teu autor. Fui eu que te criei e que te chamei até aqui.
Foste tu que…, e me chamaste… . Estendo os braços ao longo do tronco. Não percebo. Tu és o meu Criador?
Sim, mas sem C maiúsculo. Sou apenas alguém que resolveu criar um blogue e te deu uma identidade.
Reflicto uns segundos.
Espera aí! Se és o meu criador, como é que estou aqui a falar contigo, ah? Eu digo o que me apetece e tu não estás a criar-me.
O outro eu aponta para o fundo da sala.
Vês, ali, naquele computador, está escrito tudo o que aqui se está a passar. Acabei precisamente quando te sentaste.
Quer dizer que escreves às escuras?
O autor ri-se.
Não, a luz sempre esteve lá só que não tinha chegado a altura de a veres. Escuta, diz ele pondo a mão no meu braço. Chamei-te para dizer que a tua viagem chegou ao fim. O moicano vai (hesita), digamos, vai sair de cena. Esta é a tua última viagem caro moicano.
Porquê?
Ora, tudo o que começa acaba, o autor está cansado, acabou o prazo de validade, perdeu-se o rumo, sei lá, tudo isto e nada daquilo. Sinto que te tenho de dar felicidade. Tenho-te causado muito sofrimento, não consigo evitar escrever sobre a morte, sobre tristeza e isso deixa-me amargurado. Mereces melhor, mereces ser feliz, decidires o trilho que queres seguir.
Tu escreveste isto?
O autor abana a cabeça enquanto passa a mão pelo cabelo ralo.
Sim, sim. Tudo está escrito. A tua história está escrita até ao final.
Se bem percebo, vou morrer.
Lá está, vês, outra vez a morte. Estás a ficar obcecado, daqui a pouco tu és como eu e não posso permitir que isso aconteça.
Levanta-se. Puxa-me da cadeira, agarra-me os braços e fita-me nos olhos.
O teu autor é um grão de areia insignificante ao pé daquilo que tu representas para mim. Mereces viver, ouviste, viver e não morrer.
Larga-me.
Bem, o caminho com árvores e uma laje ao fundo está lá mas é tudo meramente simbólico.
Percebo. Sim, percebo. E odeio-te. Bastava escreveres que nada mais ias publicar e o assunto estava arrumado. Mas até te perdoava se não fosse Madalena. Porque a encostaste de novo ao meu peito?
O autor volta-se e carrega num interruptor. As paredes desaparecem e dão lugar a uma rua da cidade. Está frio e choveu há pouco.
Chegou a hora moicano. Farás sempre parte da minha vida. Foi uma honra escrever-te.
Estende a mão. Despedimo-nos sem palavras. Ele desaparece numa esquina. Fico petrificado na estrada enquanto todos me ignoram. Já moicano não sou.
Madalena enfia os seus braços no meu braço esquerdo. Começamos a caminhar. Diz-me que a vida continua e quando dou conta rimos juntos.

«rimos juntos». Está terminado. A luz apaga-se suavemente nos meus olhos.


Sim. Desta vez é final. O primeiro moicano acaba aqui. Poderá haver outros pioneiros mas este deixava-me muito cansado. Desde que abandonei a exposição de ideias jurídicas e me dediquei a escrever estes pedaços de histórias, sentia que cada uma podia ser a última. E agora, que mudei de tribunal, o tempo praticamente é nulo. Em termos de tempo, há prioridades e o trabalho (que não o merece, de forma alguma, neste país em que a maioria dos processos clama não por justiça mas por simples vitória) agora sobrepõe-se.
Queria escrever para os contos jurídicos mas não consegui. E mesmo nesta viagem III fico com a sensação de Matrix em que o último é o mais complexo e o menos conseguido.
Obrigado Cleópatra, a quem sempre tentei agradar em especial por que sabia que gostava do que eu escrevia. E a todos os outros (Redonda, Morgana, Dizpositivo – desinteressada amabilidade em informar que eu tinha postado -, todos os outros, obrigado e até à próxima).

23 agosto 2006

Viagem-II


O eco da sirene da ambulância perde-se na minha cabeça. Engraçado, pensei que a repartição fosse mais perto. Os anos passam e um homem perde a noção do tempo. Alguns perdem a noção de humanidade e outros a da verdade. E este miúdo, sentado nas escadas da escola, deve ter perdido os pais.
Viva. Estás à espera de alguém?
Sim. Mas acho que me vou embora.
E quem te vinha buscar não vai ficar preocupado?
Só estava à espera.
Godot. Só pode. Destes posts espero tudo.
Posso ir contigo, índio sem penas?
Bem, vou à repartição. Nada de interessante para um miúdo mas, por mim, tudo bem.
Seguimos ao lado um do outro. É simpática a criança e pergunta muito sobre a minha vida e lá vou respondendo como posso ou sei.
Não, não tenho muitos amigos, sou algo irascível. Basicamente pouco faço, escrevo ideias soltas e há pouco achei que podia contar histórias. Namorada?
Paro. Mal consigo ver o miúdo que me deu a mão há instantes. Um nevoeiro fica sempre bem numa viagem. Avanço sem saber onde dou os passos (no fundo essa tem sido a minha sina). Irrompe do solo um edifício cinzento, geométrico, frio. E Madalena. Não percebo. Madalena, o amor da minha vida, a tristeza da morte que me espera, aqui, à minha frente.
Vai ter com ela, diz o miúdo. Eu vou andando.
Desaparece na réstea de bruma.
Frente a frente olho aquela que uma vez me disse que não podia viver sem mim. Agora, já sem vida, dirige-se na minha direcção.
Olá. Não sei se estou contente de te ver mas por favor, antes de falares, abraça-me.
Encosta a cabeça ao meu queixo enquanto a seguro nas costas. Sinto-me muito triste (obrigado autor por destruíres a amostra de músculo seco que batia no meu peito). E no entanto ela sorri.
Como vai a tua viagem?
Lenta. Estou ansioso por tratar da papelada.
Madalena coloca as duas mãos na minha cara, beija-me os lábios e murmura boa sorte.
Para onde vais?
Para o meu quarto, vês? - diz apontando para a única janela que tem cortinas abertas. Foi dali que te vi chegar.
Afasta-se com a mesma expressão que tinha quando na estação do nosso destino me disse que não podíamos estar juntos.
Nevoeiro. As mesmas escadas, a mesma escola. No interior de um automóvel um homem procura alguém mas não encontra. Repara em mim. Inverte a marcha do carro e acelera no sentido oposto. Ia jurar que o conheço. Talvez da televisão.
Ah, o nevoeiro foi-se. Finalmente, a repartição.

Claro, história que se preze tem três partes pelo que na próxima postagem (mais breve que esta devido a mudanças incluindo Internet) se concluirá a minha viagem. Obrigado pela vossa paciência e amizade.

24 junho 2006

A viagem-I


Reviro-me na cama. Sonho com o voo da águia. Planando sobre as montanhas rochosas. A bater insistentemente com a cabeça na pedra. Sempre a bater na rocha ferida pelo sol do deserto…
Abre a porta, moicano! É o carteiro.
Com dificuldade, acordo. Consigo levantar-me. O cabelo revolto pende sobre os meus olhos. A porta.
Bolas! Mesmo a dormir tens tendência para o melodrama. Está na altura de parares com isso.
Sim. A vida tem de ser mais alegre. Tal como a águia que voa em direcção…
Pára, moicano. Já disse. Este post tem de ser cómico.
Tens razão amigo, digo com um sorriso nos lábios. Carnudos.
Olho para o carteiro e percebo.
Nos lábios. Certo. O que trazes para mim?
Ah, estava a ver que não perguntavas. Parece que te chamam à cidade. Actualização de dados, sabes como é, não sabes?
A cidade. Há muito que lá não vou. Edifícios que rompem o céu, quase invisível. A luz que procuramos e que nos engana num qualquer candeeiro. Ah, desculpa.
Não, até estava a gostar. A cidade também não me atrai. Pelo menos por agora. Vá, assina aqui.
Rabisco o meu nome num aviso.
O carteiro guarda o papel na mochila, despede-se. Parece que vai dizer qualquer coisa mas montando o cavalo desaparece na primeira esquina de tendas.
Venha a cidade.
Como actualizar dados significa tirar fotografias levo o meu melhor traje. Sei que vou ser alvo de todas as atenções mas moicano sou e cada um é como é.
Mãe, aquele senhor, ali junto à bilheteira, é um peru?
Boa, parece que a época migratória chegou mais cedo.
Não ligo e até sorrio para a criança. E como sei que o post tem de ser cómico, enceno uma pequena dança. O puto atira-se para o colo da mãe.
O comboio. A carruagem pára e à minha frente abre-se a porta. Sento-me e o meu mundo começa a ficar para trás. Uma criança de mão dada com um homem na plataforma atira-me um beijo com os dedos. Perco-o no canto do meu olho.
Pela janela desfilam campos, rios e casas. Adormeço com a cara encostada ao vidro. Acordo com um abanar de ombro.
Fim de linha, amigo.
O cheiro. Ausência. Aqui, a terra não cheira. As pessoas não olham. Bem, para mim olham. Terei exagerado nas penas? Que se dane. Vamos aos dados.
Sigo pela rua. Se bem me lembro a repartição é por estes lados. Ao passar por um prédio semi abandonado ouço o que parecem gemidos. Páro. Sim, deve estar alguém no prédio. Entro na amálgama de terra e ferros que se perdem no cimento. Em frente a mim um enorme buraco com água no fundo. Um miúdo olha para dentro e chora.
Nós não queríamos fazer-lhe mal, senhor! Por favor, tire-o dali!
Por todos os deuses, está um homem dentro de água com a cara virada para baixo. Deixo-me escorregar pela terra inclinada e caio dentro da lama que me dá pelos joelhos. Agarro-o pelo tronco e deito-o na terra seca. Está vivo. Viro-o de lado e após algumas pancadas começa a tossir. Olho para cima. Os miúdos miram-nos. Inexpressivos.
Está vivo! O que se passou aqui? O que lhe fizeram?
Fogem. Menos um que em voz baixa atira um desculpa e lágrimas. Desaparece a correr.
Olho para o náufrago.
O homem abre os olhos e mirando-me pergunta:
És um anjo?
Enquanto o som das sirenes da ambulância se perde, sinto-me desconfortável. Tenho calor. Tiro o cocar e as penas malditas que me encharcam o rosto de suor. Deito-o para o chão. A brisa do ar alivia-me. Tenho de seguir o meu caminho. Para a repartição.

24 maio 2006

Vida nova


Estou nua em frente ao espelho. Os olhos percorrem-me. Gosto dos meus lábios. Carnudos. Agradam-me os seios. Pequenos. Claros. Coloco as mãos na anca. Atiro a cabeça para trás sentindo o cabelo nas nádegas. É bom. Meu Deus, tão bom!
Enfio as calças de ganga. Ajusto a t-shirt branca. Simples. É como quero ser. É como finalmente posso ser.
Saio da porta do prédio. Ele está no carro à espera. Entro. Um beijo. Demorado. Não resisto e colo as minhas mãos na sua face. Olha para mim e arranca. É quase noite e só vejo o meu reflexo no vidro. Ele fala comigo e eu, desprevenida, respondo com a voz quase fugir-me ao controlo. O médico disse-me que essa era a parte mais difícil.
O jantar correu maravilhosamente. Acho que ele gosta de mim. Pegou-me nas mãos o tempo todo. Fizemos planos, brincamos, beijámo-nos.
Dançámos. A multidão balançava ritmadamente. Quase esgotada segredei-lhe ao ouvido que ia à casa-de-banho. Estou cansada e paro um pouco. Um homem empurra-me e caio. O mesmo homem levanta-me e fica a olhar para mim.
Tu? És tu? Mas, o que é isto?!
Larga-me, disse eu. Larga-me, estúpido.
O bruto não me largava. E ria e chamava os amigos que me fitavam. Ele chegou e agarrou o brutamontes.
Não, espera, tu… tu estás com ELA?
Ele agarrou-lhe os colarinhos.
Eh, meu. Calma. Podes ficar com o bichona.
O que disseste, meu merdas?
AH, não sabes? Não sabes!? Esta beleza é o Quim! Essa fofura com quem estás é um homem! Todos nós o conhecemos. Deves ter feito uma operação, meu. Não estás nada mal!
Ele largou a besta e vagarosamente olhou na minha direcção. Só consegui recuar, virar-me para a porta e fugir. Na esperança de que o amor tudo supera olhei para trás.
Fecho o diário. Coloco-o no chão. Com a lâmina corto as veias dos dois pulsos. Mergulho-os em água enquanto me estico na banheira. Não sinto nada. O vermelho da paixão tinge o meu corpo. Sonolento. Antes de fechar os olhos coloco as mãos no meio das pernas. Digam o que disserem, fui mulher.

21 abril 2006

O menino de sua mãe.


Judite está cansada. Senta-se no sofá e encolhe as pernas metendo-as quase totalmente debaixo das nádegas. Estica o braço e agarra na caneca com leite quente que leva com cuidado aos lábios cada vez mais finos. Ao colo tem um caderno com os apontamentos do último julgamento. As madeixas cinzentas do cabelo ainda húmido do banho recente pendem-lhe para a frente dos olhos. Pousa a caneca numa pequena mesa e esquecendo-se que as letras que tem à sua frente saltam umas por cima das outras sem óculos resolve atirar a cabeça para trás fitando o tecto.
Por que me esqueço sempre dos óculos na carteira pensa em voz alta. Olhos fechados.
Uma mão afaga-lhe o rosto.
Olhos fechados. Devo estar a sonhar.
Não, não estás.
Judite ergue a cabeça e lentamente olha para o lado. Estranhamente não tem medo.
Olá. Ainda te lembras de mim?
João!
Sim. Continuas absolutamente linda diz enquanto sorri.
Judite endireita-se.
Não tenhas medo. Tudo é perfeito.
Já…já morri?
João sorri. Levanta-se e caminha pela sala.
Ninguém morre, amor, diz, abrindo os braços. Estou mais vivo que nunca!
Pega num jarrão. Olha-o de perto e volta a pousá-lo.
Não, não morreste. Coloca-se de joelhos e agarra nas mãos de Judite que tem lágrimas nos olhos.
Mas debaixo deste cabelo que sempre me enfeitiçou, há uma veia doente. Não te assustes. Não vais sentir nada.
Judite fita-o pálida. A morte nunca a assustou mas agora...
Não quero morrer João, por favor, ainda não!
Porquê? Estarei sempre contigo.
Judite lembra-se. Lembra-se que não tem ninguém no mundo de quem se despedir. Tem quarenta e quatro anos e não tem pais, irmãos, sobrinhos. Filhos. Não tem filhos.
Quero ter um filho João, quero deixar alguém neste mundo que se lembre de mim, Não quero só que um morto me queira junto dele! Agarra o ex-marido. João, percebes, eu ainda não tive um filho e tu sabes o importante que isso é para mim. Meu Deus, será pedir muito que não seja agora?
Larga o espírito.
João está imóvel. Lentamente dirige-se para uma das janelas. Os automóveis seguem em fila. Não consegue evitar um fugaz momento de raiva ao pensar no camião que o esmagou. Fecha os olhos. Cerra os punhos. Torna-se praticamente transparente tal a força a que a sua pele é sujeita. A cara está alagada de suor. De repente abre os olhos e volta a ter a serenidade que ostentava quando entrou.
Regressa para junto de Judite que chora convulsivamente. Abraça-a. Beija-lhe as faces e seca-lhe as lágrimas com os seus lábios que por fim encontram os da sua vida. Desaperta os botões do pijama e lentamente deita-a na carpete. Judite a princípio não reage mas acaba por se entregar. Um momento. Um corpo.
Ainda não, amor. Ainda não.
Judite caminha agora pelo parque. Uma mão segura um livro. A outra afaga o menino que tem dentro de si.
Obrigado, mais uma vez. Ao PRF, vou pensar mas só quem não me conhece pode querer que participe em algo com qualidade. Mas vou pensar. E um dia talvez não contenha a desilusão que sinto por este País em que parece que os culpados são sempre os mais fracos.

28 março 2006

Metamorfoses


A família está reunida à mesa. Os rapazes comem procurando distrair a fome que parece nunca terem. A mãe vai comendo silenciosamente enquanto não larga de vista os pratos dos filhos. Demoradamente cheios.
E eu, observo. Procuro ouvir as notícias e ao mesmo tempo imaginá-los do lado de cá da maioridade. Claro, alguns processos não largam o meu pensamento. Mesmo quando lhes leio no quarto o Gigante Egoísta, penso que tenho seis volumes para ler esta noite.
Um beijo na minha mulher. Na face. Perdi algo que não sei se serei capaz de reencontrar. Ouço-a desligar a luz do pequeno (e moderno) candeeiro que derrama luz pelas paredes do quarto. Ligo o abat-jour e abro o processo. Em letras maiores do que as restantes está escrito PRESO. Antunes Faria, o «Pigarro», é acusado de violação.
Começo a ler o auto de notícia, a ver algumas fotografias da linha de comboio e subitamente a minha cabeça é puxada contra as folhas do maço ficando a minha face esquerda esmagada. Tento levantar a cara mas não consigo. Sinto que estou a afundar-me. A minha cabeça praticamente desapareceu no pântano do processo. Meu Deus, como dói! Sufoco! Não consigo emitir um único som e é mudo que assisto ao meu corpo submergir no processo.
Abro os olhos. Estou num café. Música alta!
Então Pigarro, não bebes nem dizes nada!
Já juiz não sou.
Não impliques meu. Não vês que estou a ver ali aquela matadora.
Pigarro olha para a mulata de dezoito anos que se vai abanando junto ao balcão. Parece estar sozinha. Ah, não. Aí está o marmanjo. Que totó! Não tens pedalada para essa poderosa!
Eh, pá, tu estás mesmo embeiçado. Vai falar com ela.
Nã, mais umas cervejas e depois eu mostro-lhe aqui um amigo, diz Pigarro enquanto leva a garrafa aos lábios e estala os dedos polegar e médio da mão direita.
A noite foi correndo tal como o álcool. A mulata sai juntamente com o namorado. Vão a pé. Saem.
Pigarro e os amigos seguem-nos. O totó já olhou duas vezes para trás. Está desconfiado o gajo!
Vão entrar num carro ao pé da estação. Não têm tempo. Enquanto dois de nós o agarram e lhe dão uns murros bem aplicados na cara, eu fico com a mulata. Ela começa a gritar (AH, deixem-no! Que querem!) e sou obrigado a dar-lhe duas bofetadas que a deixam grogue. Atiro-a para cima do capô e arranco-lhe as calças de ganga. Tiro-lhe as cuecas. Que beleza! Enquanto lhe apalpo as mamas, tiro as calças. Ela começa a mexer-se mais. Agarrem-na! Os meus amigos tapam-lhe a boca e agarram-lhe os braços. Estou quase a
Abro os olhos e vejo a minha mulher.
Não me digas que ficaste toda a noite a dormir aqui?!
Ah, não, quer dizer, não sei. Não consigo lembrar-me… .
Enquanto tomo banho penso o quanto tudo parecia tão real. Ainda bem que não estive a estudar um processo de terrorismo rio-me desta piada enquanto esfrego os sovacos.
Na sala de audiências já estou sentado com as minhas colegas ao meu lado. Os advogados mexem em papéis e ainda há burburinho na sala. Os irritantes sshh do funcionário acabam por nos silenciar. Com a folha aberta na primeira página da acusação preparo-me para identificar o arguido mas um barulho distrai-me. Eu conheço este som mas de onde vem? Olho para o lado mas as juízas fitam-me interrogativas. Bem, não há de ser nada. Vamos a isto. Olho para o arguido e vejo-o a estalar os dedos da mão direita.
Obrigado a todos os comentários e só a vossa boa vontade pode descobrir tanto em tão pouco. Vou escrevendo sempre que vá encontrando forças para tal e desculpem pelo meu silêncio.

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